Este ano eu completo 30 invernos (não são primaveras, pois nasci em julho). Os que já passaram por essa fase sabem que ela vem recheada de mudanças, tanto físicas (já me chamam de Tia ou Senhora na rua!!!), como comportamentais, e com isso vêm os questionamentos.

Após a miscelânea de emoções vividas nos últimos anos, resolvi tirar um tempo para mim. Quero vivenciar situações imprevistas e redescobrir a Flávia, que por vezes vinha se escorando em personagens circunstanciais.

Obtive a aprovação do meu pedido de licença sem vencimentos do trabalho, por um período de um ano. Só faltava isso para começar o meu planejamento de transformar minhas economias em passagens, albergues, museus, paisagens, espiritualidade, comidas, encontros e desencontros.

Dois mil e oito para mim vai ser o ano da cigarra! – Isso não é horóscopo Chinês, Maia ou Checheno; é o resgate da Fábula de La Fontaine (mais conhecida como Fábula da cigarra e da formiga), mas com uma inversão de sua moral: sim, paremos para cantar e apreciar a primavera, e desfrutemos o ócio!!!!!

Meu caminho

26 de outubro de 2008

Polônia

De Praga, Marco, Helder e eu partimos em um trem noturno para a Cracóvia, sul da Polônia. Chegamos na manhã do dia seguinte, deixamos as bagagens no albergue e já saímos para explorar a parte histórica da cidade. Tínhamos que aproveitar cada minuto, pois lá só permaneceríamos 3 noites.

Cracóvia é uma das cidades mais importantes da Polônia. Ela se destaca por ser centro cultural e político do país, já que foi a capital da Polônia de 1038 a 1596, e a capital Grande Ducado de Cracóvia (um região independente) de 1846 a 1918. Também é considerada uma das cidades mais bonitas do país, pois, diferente de Varsóvia, não foi tão destruída durante a segunda guerra. Visitamos a parte antiga da cidade, que está envolta por muros do período medieval, passando por igrejas, edifícios históricos e a área do castelo Wawel. Toda essa região é muito bonita, com destaque à praça Main Market Square. Entretanto, é difícil sair de Praga e não fazer comparações, assim, achamos que alguns prédios estavam em mal estado de conservação e que mereceriam uma revitalização.

Vale destacar um fato que chamou muito nossa atenção durante esse trajeto. Visitamos uma igreja em plena hora da missa e ficamos impressionados com a grande quantidade de jovens que assistiam à cerimônia, fato cada vez mais raro nos países católicos da Europa por onde estive. Em Portugal, Espanha e França parece que a moçada mais jovem não quer saber muito de igreja. Além disso, vale também dizer que a beleza das polacas foi algo notado, principalmente pelos meus, atentos, companheiros de viagem.

Nesse primeiro dia fomos dormir mais cedo, exaustos, com o intuito de nos preparar fisicamente e mentalmente para o passeio do dia seguinte: iríamos bem cedo para a cidade vizinha de Oświęcim, ou Auschwitz em alemão, onde estão os maiores e mais conhecidos campos de concentração da Alemanha nazista! Lá funcionaram áreas de extermínio e de trabalho forçado de prisioneiros que vinham não só da Polônia, mas de diferentes países ocupados pelos nazistas. Distintas estimativas apontam entre 800 mil a 5 milhões de pessoas mortas, durante os 5 anos de funcionamento desses campos (1940 à 1945), enquanto os dados oficiais consideram o total de 1.1 milhão de pessoas, sendo em torno 90% de judeus, mas também uma parcela significativa de poloneses, ciganos, soviéticos prisioneiros de guerra e outros.

O que é conhecido como Auschwitz é na verdade um complexo formado por 3 campos de concentração próximos entre si (Auschwitz, Birkenau e Monowitz). O primeiro foi restaurado e transformado em um museu em memória àqueles prisioneiros que passaram por lá, sendo Birkenau um anexo para visitação, porém que não foi reformado. Por seu caráter, é um museu com entrada gratuita e foi considerado um patrimônio mundial pela UNESCO.

No ônibus conhecemos uma grega, chamada Koula, que viajava só e, então, juntou-se a nós. Iniciamos nossa visita pela área de Auschwitz. Essa é formada por cerca de duas dezenas de prédios de tijolos á vista (iguais aos da cidade cenográfica do filme A vida é bela!), onde funcionava o centro administrativo de todo o complexo Auschwitz. Contudo, parte dos prédios também mantinha alguns prisioneiros, principalmente poloneses e russos.

Alguns desses prédios estão abertos à visitação. Parte traz exposições organizadas pelos diferentes países que tiveram vítimas no complexo Auschwitz, com informações históricas, fotos, homenagens às vítimas e instalações de arte relacionadas ao tema. Outros expõem reconstituições de ambientes que existiam neste campo de concentração, como escritórios dos oficiais nazistas, recinto dos presos, (proto)banheiros, salas de tortura, prisões, câmaras de gás, crematório de corpos e até a sala das cruéis experiências científicas realizadas por Josef Menguele. As exposições são de grande qualidade, com um aporte muito bom de informações em várias línguas. Porém, o conteúdo de grande parte delas é muito forte, com apresentação de fotos de pessoas desnutridas, nuas, aterrorizadas, sendo humilhadas, violentadas ou mortas. Também são chocantes as instalações feitas com objetos pessoais dos prisioneiros, como com enormes amontoados de roupas, sapatos, malas, pentes e outros, principalmente aquelas feitas com roupas e sapatos das crianças que passaram por lá.

Aquilo tudo era muito intenso e perturbador. Um nó na garganta se formou desde que passamos pelo famoso portão com os escritos “Arbeit macht frei” (“O trabalho liberta”) e esse foi se apertando a cada novo pavilhão visitado. Já estava quase sufocada quando vivenciei o ápice dessa emoção, ao ver uma parede inteira com uma seqüência de fotos daquelas pessoas que faziam parte do movimento clandestino de resistência. Eram fotos tiradas para o registro dos presos, dentro do campo de concentração. A uniformidade provocada pelas peles claras, cabeças raspadas e roupas listradas se personalizava com a singularidade de cada fisionomia e olhar, que de tão expressivos, transcendiam os limites do tempo e espaço em que foram impressas as imagens. Aquela multidão estava ali, presente, a nos observar e intimidar.

Havia alguns olhos de medo e horror, mas a maioria era de olhos de dignidade, perturbadoramente fixos em direção à câmera e erguidos por cabeças que se postavam em angulação superior a 90 graus, em relação aos magros pescoços. Eram de pessoas que, mesmo com medo, acima de tudo tinham a coragem de se engajar em um movimento de luta contra aquela situação calamitosa. Desafiada, meus olhos de vergonha foram escondidos por óculos escuros e dissolvidos em lágrimas, que ajudavam a desafrouxar o nó que me sufocava.

Depois de terminado o percurso no museu, seguimos para Birkenau. Esse campo é bem maior e apresenta uma paisagem mais agressiva que Auschwitz. Na entrada há uma ampla esplanada e os restos da linha férrea por onde chegavam os presos. Na parte interior as construções são mais rústicas e quase não existem árvores. Dessas construções, há apenas alguns barracões de madeira que sobreviveram ao tempo e às investidas dos exércitos aliados, como também dos próprios nazistas, que no final da guerra buscaram apagar as comprometedoras memórias daquele holocausto. Entretanto, da maioria dos barracões só restaram as bases, de alvenaria.

O interior desses barracões é bruto e estes mais se parecem a estábulos para animais (ou pior!). Contudo, essa foi a morada da maioria dos judeus que permaneceram presos no complexo de Auschwitz, os quais sobreviveram à fase de seleção. Na realidade, Birkenau (também conhecido como Auschwitz II) foi um grande campo de extermínio e em torno de 3/4 dos prisioneiros que por alí passaram foram exterminados logo após sua chegada. Quando esses desembarcavam dos trens, os oficiais nazistas escolhiam e separavam alguns, com características físicas mais aptas ao trabalho. O restante, que incluía principalmente crianças, idosos e muitas mulheres, era mandado direto para as câmaras de gás. Os selecionados iriam trabalhar como escravos em indústrias e passar por um processo de seleção diária, ou seja, sobreviver em condições de esforço físico pesado, pouca alimentação, falta de higiene e constantes humilhações.

Lá encontramos vários grupos de estudantes secundaristas vindo de Israel e que estavam visivelmente emocionados. Nós também estávamos perturbados e introspectivos.





Ao regressarmos a Cracóvia nos sentíamos exaustos, mas a queixa de nossos estômagos nos arrastou à área histórica da cidade. Só a vivacidade da praça central foi capaz de mudar os nossos humores. Ela estava cheia de gente e artistas de rua, a exemplo de habilidosos músicos, dançarinos e malabaristas. Fomos, então, recarregados por alimento e arte aquela noite, o que proporcionou uma noite de sono mais leve para todos.

No dia seguinte visitamos uma mina de sal do século XIII, que chega a 327 metros de profundidade. É um local interessante, com uma exposição sobre a história da mina, métodos de exploração de sal, salões e esculturas esculpidas pelos mineiros que ali trabalhavam. Essa mina me fez lembrar um passeio que fiz em 2005, na também belíssima Catedral de Sal em Zipaquitá, na Colômbia. Por alguns instantes, bateu a nostalgia...

A manhã seguinte foi triste para mim, pois meu querido amigo Marco seguiria para Paris, onde pegaria um vôo de volta ao Brasil. Na verdade fui sentindo o vazio da despedida ao longo do dia, pois quando ele partiu eu estava dormindo. O único consolo à dor de sua ausência foi o prazer da companhia do Helder por mais um dia. Nessa tarde aproveitamos para explorar o antigo bairro judeu de Cracóvia e estivemos imersos, novamente, nas marcas que a Segunda Guerra deixou no país. Lá visitamos um museu de cultura judaica, que conta a história desse povo na região do sul da Polônia, mostrando sua cultura e os diversos períodos de perseguição anti-semita ao longo da história. Também fomos à área do antigo gueto judaico, onde eles foram confinados pelos nazistas antes de serem enviados para os campos de concentração. Os prédios em péssimo estado de conservação e a quantidade de escombros sugerem que essa área é bastante desvalorizada. De maneira geral, nessa região a comunidade judaica é incipiente, já que muitos fugiram antes da guerra, a maioria foi morta durante o holocausto e a maior parte dos que sobreviveram partiu, especialmente para o Oriente Médio, após a criação do Estado de Israel.

Nessa noite, Helder e eu pegamos um trem noturno de volta a Praga, para na manhã seguinte nos despedirmos apressadamente. Eu pegaria um trem com destino ao norte da República Checa e ele um vôo para Portugal. Alcancei o comboio no último minuto e foi só o tempo de baixar a adrenalina para começar a sentir a ausência dos amigos, uma sutil sensação de vazio. Horas depois, meu consolo viria das verdejantes montanhas da bucólica Cerny Dull.



3 comentários:

Anônimo disse...

Como conheço o horror desses "campos de concentração",por relatos,pela leitura,pelo cinema,que tão bem descreve com uma carga intença que nos emociona,como emocionou a Flávia,só se me oferece dizer/gritar : " NÃO AO ESQUECIMENTO ,NÃO AO BRANQUEAMENTO,PARA QUE NÃO ESQUEÇAMOS,PARA QUE NUNCA MAIS SE REPITA ".

Anônimo disse...

Flavia, está lindo. Não é crivel acreditar como um povo tão culto como o Alemão pode fazer isso. Quando visitei DACHAU, no mês passado, o qual foi o embrião de todos esses campos de concentrações, constatei que os Alemães que estavam conosco sentiam vergonha de tudo isso. Parabens pelo Texto. Beijos, filha.Betão

Ana Conti disse...

È Fafa, histórias que falam de um passado mas que jamais deve ser esqucido e por isso é bem legal que tuda esteja assim tão preservado e realista.
Grande beijo.